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PASSAGEM DO ANO

Atualizado: 29 de fev.




O último dia do ano


Não é o último dia do tempo.


Outros dias virão


E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.


Beijarás bocas, rasgarás papéis,


Farás viagens e tantas celebrações


De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia


E coral,


Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,


Os irreparáveis uivos


Do lobo, na solidão.


O último dia do tempo


Não é o último dia de tudo.


Fica sempre uma franja de vida


Onde se sentam dois homens.


Um homem e seu contrário,


Uma mulher e seu pé,


Um corpo e sua memória,


Um olho e seu brilho,


Uma voz e seu eco.


E quem sabe até se Deus…


Recebe com simplicidade este presente do acaso.


Mereceste viver mais um ano.


Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.


Teu pai morreu, teu avô também.


Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,


Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,


E de copo na mão


Esperas amanhecer.


O recurso de se embriagar.


O recurso da dança e do grito,


O recurso da bola colorida,


O recurso de Kant e da poesia,


Todos eles… e nenhum resolve.


Surge a manhã de um novo ano.


As coisas estão limpas, ordenadas.


O corpo gasto renova-se em espuma.


Todos os sentidos alerta funcionam.


A boca está comendo vida.


A boca está entupida de vida.


A vida escorre da boca,


Lambuza as mãos, a calçada.


A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.






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